Reparação e assistência para crianças afetadas pela pandemia
A história de Paola Falceta é apenas uma entre as muitas que ilustram a tragédia causada pela covid-19 no Brasil. Em 2021, a mãe de Paola foi uma das mais de 700 mil vítimas fatais da doença. Essa perda profunda motivou a assistente social a criar a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico), em colaboração com um amigo. O principal objetivo? Buscar justiça e reparação por todas as mortes que, segundo ela, poderiam ter sido evitadas. Desde o princípio, Paola percebeu que muitos familiares, especialmente as crianças e adolescentes, precisavam de representação.
“Eu pensava muito nas crianças e adolescentes, sobretudo aqueles cujo pai trabalhava de forma informal ou que eram filhos de mães solos. Essas crianças muitas vezes acabavam sob os cuidados de avós”, reflete Paola, que atualmente ocupa o cargo de vice-presidente da Avico. Ela também destaca as dificuldades que um trabalhador da classe C enfrenta: “Se eu perder o meu emprego agora, fico sem recursos. Imagine se eu tivesse duas crianças pequenas e morresse? Como ficariam?”, questiona, evidenciando a invisibilidade que muitas dessas crianças enfrentam.
Um estudo recente revelou a gravidade da situação, indicando que cerca de 284 mil crianças e adolescentes no Brasil perderam pais ou responsáveis diretos durante os anos de 2020 e 2021 por causa da pandemia. Paola e os pesquisadores alertam que, até o momento, não existe uma política nacional estruturada para oferecer suporte a esses órfãos, embora algumas iniciativas locais, como a do estado do Ceará, ofereçam um auxílio mensal de R$ 500 para as crianças que perderam um dos pais.
Desafios legislativos e a luta por justiça
Na esfera federal, a busca por apoio tem sido difícil. Projetos de lei, como o PL 2.180 de 2021, que visa criar um fundo e um programa de amparo para órfãos, ainda estão tramitando lentamente. O Ministério dos Direitos Humanos iniciou discussões em 2023 sobre possíveis medidas de proteção, mas ainda não há ações concretas. Em resposta a uma consulta da imprensa, a recomendação do ministério foi procurar o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Famílias e Combate à Fome, que não respondeu.
A Avico, desde junho de 2021, tem atuado judicialmente, como no caso de uma representação criminal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, devido à sua gestão durante a pandemia, que Paola acredita ser um dos principais fatores do elevado número de mortes e, consequentemente, de órfãos no Brasil. Embora essa ação tenha sido arquivada, Paola reconhece que a visibilidade da Avico aumentou significativamente como resultado.
Uma das principais esperanças no âmbito judicial é uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) em Brasília, que busca indenizações para as famílias das vítimas. Desde 2021, o MPF solicita que cada família receba um mínimo de R$ 100 mil, além de R$ 50 mil para sobreviventes que enfrentam sequelas graves. O MPF também reivindica R$ 1 bilhão para o Fundo Federal dos Direitos Difusos como forma de reparação coletiva.
Paola confia na justiça, embora não saiba quando a decisão final virá. Ela participou ativamente do processo, reunindo 139 testemunhas e contribuindo com justificativas científicas, ao lado de pesquisadores que estudam os efeitos da pandemia.
O impacto da tragédia na vida das crianças
A questão da orfandade durante a pandemia também mobilizou o pedagogo e pesquisador Milton Alves Santos, coordenador-executivo da Coalizão Orfandade e Direitos. A organização se dedica a discutir a orfandade em geral, mas tem se concentrado nas consequências da covid-19 devido à sua severidade.
“Formamos uma rede de reparação, verdade e justiça, porque o Estado brasileiro precisa responsabilizar-se pelos crimes de saúde pública ocorridos em diversos níveis de governo”, afirma Milton. Ele destaca a gravidade do impacto financeiro que a orfandade acarreta, salientando que a falta de suporte pode comprometer a saúde e o bem-estar das crianças. Além disso, Milton evidencia o impacto psicológico dessa perda. “Algumas crianças nem chegaram a ver o enterro dos pais e, no caso de algumas, o responsável já estava falecido antes do seu nascimento”, destaca.
Para Paola, as reparações financeiras podem enfrentar obstáculos, dado o número elevado de crianças afetadas. Porém, Milton defende que o Estado deve implementar políticas mais acessíveis enquanto as indenizações não são realizadas. “Seria fundamental criar diretrizes nacionais que orientem os serviços de assistência e garantias de direitos para lidar com a orfandade, o que teria um efeito significativo”, sugere.
No Sistema Único de Assistência Social (Suas), já existe uma orientação para priorizar as crianças orfãs, e esforços estão sendo feitos para sensibilizar conselhos nacionais de saúde e proteção à infância sobre essa questão.
Testemunhos de dor e esperança
Um exemplo tocante dessa tragédia é a história de Bento, um garoto de apenas 8 anos, filho do fotógrafo Claudio da Silva, que faleceu em 2021 devido à covid-19. Sua mãe, Ana Lúcia Lopes, tem se esforçado para manter a estabilidade financeira com a pensão deixada por Claudio, mas a saudade é constante.
“Penso nele todos os dias e me pergunto como ele reagiria a diferentes situações, especialmente com Bento”, conta Ana Lúcia. “Se ele estivesse aqui, faria questão de acompanhar nosso filho nas atividades, como natação e judô. Claudio era uma presença alegre e sempre buscava novas aventuras. Sinto muita falta dessa companhia e sei que Bento também sentiria orgulho do pai”, revela.
Assim como Paola e Milton, Ana Lúcia acredita que é fundamental haver reparação pelos danos causados. “Sinto revolta ao pensar que Claudio poderia ter sido vacinado e protegido, mas não teve essa chance”, lamenta.
Milton Alves Santos, da Coalizão Orfandade e Direitos, ressalta que garantir reparação é uma forma de honrar a memória das vidas perdidas: “Sem memória não há verdade, e sem verdade não há justiça”. A vice-presidente da Avico, por sua vez, possui uma determinação firme: “Se as soluções não forem alcançadas aqui, buscaremos caminhos no Tribunal Penal Internacional. A luta continua.”
